terça-feira, 18 de novembro de 2014

KIRIKU E A FEITICEIRA*

cena do filme "Kiriku e a Feiticeira".

A história começa ainda no ventre da mãe de Kiriku, quando este pede para nascer. Ao que a mãe responde que uma criança que, no ventre, pede para vir ao mundo, então, poderá fazê-lo sozinha. Ele nasce e, apesar de recém-nascido, o mesma já fala e informa que seu nome é Kiriku. Depois, ele pede para ser banhado e a mãe retruca dizendo que uma criança que consegue vir ao mundo só, também poderá banhar-se só. Ele parece não ver dificuldade nisso e, toma banho.
Com esses primeiros atos de independência e desenvoltura, percebemos que o pequeno herói não se abate diante de negativas e/ou obstáculos.
Logo em seguida, o curioso garoto questiona sobre as outras pessoas da família, inclusive o próprio pai. Sua mãe conta-lhe sobre as desgraças de sua aldeia causadas por uma bruxa chamada Karaba que secara a fonte que lhes provia água e devorou o seu pai junto com quase todos os outros homens da vila e que apenas o seu tio ainda estava vivo.
Mas neste mesmo instante, o tio se dirigia às terras da feiticeira para exigir o fim das maldades infligidas por ela. Kiriku corre até o tio e insiste em acompanhá-lo, mas ele não permite a presença do sobrinho. Aí, vem o primeiro momento de astúcia da criança [muitos outros virão]... O pequeno se esconde dentro de um chapéu para conseguir seguir viagem com o tio. Disfarçado no chapéu, Kiriku consegue salvá-lo de uma morte certa e engana Karaba, fazendo esta pensar que o chapéu era mágico. Quando percebe que foi enganada, a feiticeira envia seus autômatos à aldeia e exige todo ouro das mulheres.
Kiriku, mais uma vez, vai até os domínios da feiticeira, agora desejando conversar com ela e saber por que ela é tão má. Na verdade, ele se apresenta e exige dela uma resposta a respeito de seus atos malévolos. A bruxa sente-se ofendida e diz que, por tal impertinência, ele pagará caro. Mas ela vai esperar ele crescer um pouco mais.
Como vingança ao atrevimento do garotinho, Karaba tenta sequestrar todas as crianças da tribo que são salvas diversas vezes por ele.
Entre outros atos ele mostra resiliência quando não desiste das agruras infligidas pela feiticeira e decepções dentro da própria comunidade.
***
O roteiro de "Kiriku" foi criado a partir de uma lenda da África Ocidental. No entanto, não espere aqui a visão ocidentalizada da África. E sim, algo próximo do que pode ser o "real": cores; cenários; luz; personagens que figuram um tipo étnico; figurinos; a seminudez, que nada tem de agravante, principalmente aos olhos de uma criança; sons e a música.
E a música tem uma força muito grande na história. Diante de cada ato heroico do destemido garoto, vem uma canção enaltecendo seus feitos. Mas, diferente de outras animações, em "Kiriku e a Feiticeira" as cantigas feitas pelos aldeões se faz presente e viva tal qual como é a musicalidade dos povos do continente africano. Através de solfejos, batuques e danças, surge uma canção. É orgânico e pulsante. Impossível não cantarolar por algum tempo após o término do filme.
No entanto, mesmo com ele salvando a aldeia a todo instante, o intrépido garoto sofre com o constante preconceito por ser muito pequeno e até mesmo por ser muito esperto [o medo irracional do "diferente"?].
Kiriku nos dá uma lição de altruísmo, determinação e sensibilidade quando, mesmo sendo alvo de duras críticas por seu comportamento excêntrico [falar em tão tenra idade; andar agilmente; intuição e reflexão a respeito da Vida], não desiste de salvar todos da aldeia e de querer descobrir as motivações da feiticeira.
Em sua trajetória, ele não é movido pelo ódio e não vai atrás da feiticeira em busca de vingança e morte. Aliás, morte está longe de ser a solução para resolver os problemas nessa história - talvez por todos já sofrerem com as perdas de seus entes. Nem quando é colocado em situações extremas, parece ser considerada a possibilidade de matar o oponente [mesmo quando Kiriku enfrenta animais irracionais].
O desejo de salvar a todos inclui também salvar a feiticeira dela mesma, já que ele insiste em descobrir o que a torna má. E é movido por esse desejo que Kiriku - em mais um momento de astúcia, quando precisa despistar os guardas da feiticeira e chegar até a montanha que fica por trás da cabana de Karaba - sairá em busca dos conselhos de um sábio, seu avô, que, além de lhe contar como resolver os problemas com Karaba, lhe diz para aproveitar a sua infância enquanto ainda é criança e ser feliz por isso, e quando for adulto - em seu devido momento - também ser feliz.
Aliás, na cena em que encontra o avô, após receber seus conselhos, o jovem mostra que, apesar de toda bravura, está cansado de lutar sozinho e também tem fraquezas e medo, então, pede colo. Mas sem mantém firme em pensar sempre no coletivo em primeiro lugar.
Todas as ações de Kiriku são pensadas para o bem de todos. Ele é incansável em suas questões, sempre querendo saber o porquê das coisas, mas não apenas para saciar suas dúvidas, e sim, para encontrar meios de ajudar a todos.
A forte sensação da presença da oralidade provavelmente se dá pelo fato do filme ser baseado em uma lenda. Algo como, quando crianças, sentávamos para ouvir histórias contadas por nossos avós, aqui também levamos e guardamos algumas lições.
Um filme cativante, emocionante, engraçado e que nos faz olhar para uma criança e esperar bem mais que atitudes infantis, "Kiriku" nos mostra o quanto o desejo por mudança combinado com ações pode nos dar resultados nunca antes imaginados.




(*) TEXTO PUBLICADO NA REVISTA "FAMÍLIA CRISTÃ". EDIÇÃO NOVEMBRO/2013.