Éramos apenas crianças no final dos '80. Mas,
naquela época, já ansiávamos desesperadamente pelo Ano 2000!! Sabíamos que,
quando esse ano chegasse, teríamos máquinas/robôs sencientes; a cura do câncer
e outras doenças terríveis; algum contato ou até mesmo relações diplomáticas
com seres extraterrestres; o fim da fome no Mundo e, principalmente, existiriam
os carros voadores!
Tudo o que eu e meu irmão mais novo queríamos
era ver carros voadores. Aliás, mais do que ver, nós queríamos andar (voar?) em
carros voadores!!!
Ainda teríamos que atravessar toda década de '90
para poder ter isso. O que, aos olhos de uma criança, essa espera podia ser
comparada à eternidade. Mas sabíamos que valeria a pena! Afinal, qualquer
sacrifício seria válido pelos carros voadores!
Portanto, com isso em mente, suportamos as
músicas chatas, a programação imbecil dos meios de comunicação, as aulas
infrutíferas na escola (em busca pelo tal do X que nunca era encontrado por mim
nem pela maioria dos meus colegas!) e até comíamos os vegetais que nossos pais
nos obrigava. Tudo isso, sempre de olho em nossa terra prometida. Quanto menos
resistíssemos, mais rápido o tempo passaria.
Todas as noites, antes de dormir, meu irmão e
eu, repassávamos quais seriam os métodos aplicados pelos
cientistas/engenheiros/mecânicos para conseguir fazer um carro voar. Nossas
hipóteses eram baseadas na Literatura Sci-fi que tínhamos acesso e na imensa
imaginação que dispúnhamos. Mas não importava se fosse "batendo asas"
ou com um balão preso ao teto. Desde que fosse um carro, mais pesado do que o
ar, voando.
Nossos amigos também conversavam conosco sobre
isso, porém, nenhum deles partilhava da mesma empolgação que nós dois.
Na metade dos anos '90, papai nos fez uma
surpresa. Estávamos em férias escolares e a viagem daquele ano, seria feita de
avião.
Não éramos pobres, no entanto, naquela época,
para custear uma viagem de avião com toda a família, ele teve que se desdobrar
em horas e mais horas extras. Tanto antes da viagem, como depois dela.
Chegamos no aeroporto e ele não parava de olhar
pra gente e sorrir. Provavelmente, esperando uma reação nossa. Talvez, uma cara
de fascínio ou algo do tipo. Inicialmente, não fizemos. Mas quando percebi que
ele nos olhava desesperadamente e não parava de nos fotografar, entendi o que
ele esperava de nós, cochichei para o meu irmão e começamos a nos mostrar bem
felizes porque íamos andar de avião.
Não estávamos felizes.
O ponto é, nós não tínhamos o tolo sonho de
voar. Não era isso. O que queríamos era um carro que voasse. A função do avião
já era voar. Ele não fazia menos do que sua obrigação. Mas um carro não!
Sem contar a parte fantástica de algo compacto
(em comparação a um avião, por exemplo) que anda pelas ruas, de repente, alçar
voo.
Fomos; aproveitamos nossas férias; voltamos.
Papai com vários rolos de filme para revelar, sendo a maior parte deles, usados
nos aeroportos - de ida e volta - e dentro do avião. Teríamos a recordação
daquele incrível momento em nossas vidas, para sempre!, segundo papai. Nunca me
importei com essas fotografias.
Os '90 chegavam ao fim e já não éramos mais
crianças, mas continuávamos sonhadores. Não tão sonhadores a ponto de acreditar
que o tal carro voador viria. Mesmo assim, isso não nos impedia de manter esse
desejo.
***
Dezembro de 1999, dia 31. Finalmente o Ano 2000
estava realmente próximo!
Meu irmão e eu combinamos de passar a virada do
ano juntos. Na verdade, foi um juramento de quando ainda éramos pequenos. Mesmo
sabendo que não teríamos todas as tecnologias esperada, principalmente o carro
voador, não quebramos o juramento.
E então o grande momento chegou e começou a
contagem regressiva.
10
A gente se olhou.
09
Rimos.
08
Mas foi um riso nervoso.
07
Olhamos pro céu.
06
As pessoas ao nosso redor pareciam bem felizes.
05
Nós dois, não.
04
Mesmo assim, erguemos nossas taças.
03
Como se fosse ensaiado, nossos olhos se dirigiram para um carro
que estava estacionado próximo da gente.
02
Não precisávamos dizer nada, mas ver aquele carro - que não podia
voar - nos deu uma certeza de que o futuro que tanto discutimos em nossa
infância, nunca chegaria.
01
Olhamos para o céu mais uma vez.
Silêncio.
Os fogos de artifício, apesar de brilharem no
céu com toda sua magnitude, não produziram som algum. Não houve gritos de
"Feliz Ano-novo!".
As pessoas começaram a se olhar sem entender o
motivo do silêncio. E se desesperaram quando perceberam que não conseguiam
ouvir umas as outras. Era como se qualquer som fosse impossível de ser
reproduzido. Estávamos num vácuo absoluto.
Então começamos a sentir uma coisa. Um tremor.
O chão vibrava. E nossos corpos vibravam também.
De repente, veio o grande "bum". Luz,
som, tremor, fogo, água, o chão se abrindo... Tudo no mesmo instante. E aí, o
tempo se dilatou, se encolheu e se engoliu e expandiu!! Ficou tudo confuso.
Depois dessa catástrofe, quase toda vida foi
varrida da face da terra.
Os poucos de nós, seres humanos, que sobrevivemos,
nunca conseguimos descobrir o que realmente aconteceu.
Principalmente porque, no início, não
conseguíamos ouvir. Surdez temporária para alguns, e permanente para muitos. E
também porque o choque foi muito grande. Ninguém queria mais falar. O único som
que a grande maioria emitia era apenas choro.
Muito depois, quando as pessoas conseguiram
voltar a se comunicar umas com as outras, disseram que foram experimentos com
bombas; outros, que os russos lançaram foguetes pelo Mundo; outros, que foi um
grande terremoto; ou era a Terra finalmente cobrando com juros todos os mal tratos
que sofreu; que havia sido castigo de alguma divindade vingativa e mimada; e
mais tantas outras suposições. O fato é que nenhuma delas conseguia fazer mais
sentido do que a outra. Todas improváveis e igualmente absurdas.
Os sobreviventes viraram nômades. Ninguém ficava
muito tempo no mesmo lugar. Ou não aguentavam a paisagem desoladora, além do
mar de corpos espalhados por todos os lugares (era tanta gente morta que se
tornou impossível enterrá-las), ou porque o próprio local não era amistoso para
tentar levar a vida, terra infértil, sem água, sem animais.
Apesar de tudo, o nosso sentimento de
coletividade ficou mais forte. Nos tornamos mais empáticos. Preocupados com a
vida humana.
Sempre que alguém encontra outro alguém pelo
caminho, essa pessoa é prontamente inserida no grupo. Não deixamos ninguém para
trás. Juntos, nos tornamos, se não fortes, mas pelo menos, menos fracos.
Falamos e escutamos pouco ou nada. Mas com um
único olhar, entendemos a necessidade do outro.
Atualmente, não temos mais calendário. Vivemos
cada dia e pronto. O futuro não existe.
Porém, mesmo que não tenhamos nos tornado
bárbaros, neste momento da minha vida, eu sempre desejo algo que me fizesse
lembrar como era antes disso tudo acontecer.
As roupas, a programação idiotizante da TV, as
músicas estúpidas, meus livros, filmes e séries de ficção científica, as comidas,
meu professor de Matemática nos exigindo que encontrássemos o X... Queria
qualquer coisa que eu não tinha mais. Menos as fotografias da viagem de avião.
Delas, não sinto falta.
O meu irmão... Bom, ele ficou no Ano 2000 para
sempre. O futuro que ficou no passado.
Todas as noites, quando durmo, vejo carros
voadores. Centenas, milhares. E dentro de um deles, estamos meu irmão e eu,
rindo muito, em um momento de felicidade explosiva, e voamos sem nenhum
destino. Mas ir para algum lugar não importa, no sonho, o nosso sonho se tornou
realidade.
Eu nunca quero acordar.ANO 2000
Éramos apenas crianças no final dos '80. Mas, naquela época, já
ansiávamos desesperadamente pelo Ano 2000!! Sabíamos que, quando esse
ano chegasse, teríamos máquinas/robôs sencientes; a cura do câncer e
outras doenças terríveis; algum contato ou até mesmo relações diplomáticas
com seres extraterrestres; o fim da fome no Mundo e, principalmente,
existiriam os carros voadores!
Tudo o que eu e meu irmão mais novo queríamos era ver carros
voadores. Aliás, mais do que ver, nós queríamos andar (voar?) em carros
voadores!!!
Ainda teríamos que