sábado, 1 de junho de 2013

COTIDIANO

Ora, eu não tenho mais idade para essas coisas! Mas ele insiste!

Sei que ainda sou bonita, mas não sou nenhuma moçoila para ficar nesse tipo de situação.

Todos os dias ele passa aqui na calçada, tosse alto, cumprimenta alguém do outro lado da rua e para ao lado da minha janela. A da sala, pois a janela do meu quarto dá para o quintal. E eu não lhe daria tanta liberdade assim se minha janela do quarto fosse de frente para rua.

Fica lá parado até eu aparecer para mandar-lhe sair. Deseja-me “bom dia!” com um sorriso cheiro de dentes – provavelmente falsos – fingindo que não me ouviu e que não percebe meu mau humor. Não respondo. Sorri mais uma vez e diz: “Bom dia, Dona Aurora! Como sempre a senhora continua jovem!”. Minha vez de fingir que não escuto, afinal, não posso dar liberdade.

Ele puxa conversa falando sobre a carestia das coisas, e eu apenas lhe respondo:

- Apesar de minha aposentadoria ser pouca, não sou uma mulher de luxo, e o que ganho ainda dá para comprar minha comida e meus remédios.

Ele solta um galanteio dizendo que, com certeza, jovem como sou, não preciso de remédios. Abusado. Mal sabe esse sujeitinho que se não fossem meus remédios, já teria morrido de tanta dor nas costas.

Fica por lá mais um instante e depois se despede dizendo que vai visitar outros amigos. Sei... Com certeza deve ir para alguma casa de favores. Um velho daqueles! Deveria se envergonhar, isso sim!


À noite ele passa de volta. No exato momento que estou sentada na calçada. Pára, e sem a menor cerimônia, puxa uma cadeira e se senta. Abusado.

Já pensei em não mais sentar na calçada, se ainda o faço é por consideração às minhas comadres que gostam da minha companhia.

Continuo sentada, mas tento ignorar ao máximo a presença irritante desse velho. Porém, abusado do jeito que é, fica falando comigo o tempo todo. Com aquele sorriso frouxo, fica questionando como é que eu consigo morar sozinha em uma casa tão grande. Respondo que, se Nosso Senhor levou meu marido e nunca me deu filhos, é porque quer que eu more sozinha mesmo. Aí ele diz todo se insinuando: “Ah, mas a senhora deveria, pelo menos, alugar um de seus quartos. Assim não ficaria só, o que é bom para a sua segurança, e ainda ganharia alguns mil-réis”.

As comadres percebendo que essa conversa sempre me aborrece, vão logo se levantando, desejam-me “boa noite!” e vão para as suas casas. Ele – como sempre – se oferece para guardar as cadeiras. Digo que não precisa, mas mesmo assim, ele as guarda só para entrar na minha casa. Como quem nada quer, comenta que a noite está fria e que só um cafezinho mesmo para espantar o frio. Ofereço-lhe café [só por educação] e ele vai logo sentando no sofá. Abusado.

Comenta mais uma vez que eu deveria alugar um quarto. “Eu mesmo, por exemplo, pagaria por um, afinal, há tempos que penso em sair daquele quartinho alugado lá da Rua dos Remédios”, fala todo pomposo.

Mal termina seu café e eu já pego logo a xícara da sua mão, abro a porta da rua e lhe dou “boa noite!”.

“Não quero tomar o tempo da senhora mais que já tomei. Mas pense sobre o aluguel do quarto. Passar bem!”, diz querendo parecer um cavalheiro. Sorrio-lhe só por educação.

Ele sai. Eu vou para o meu quarto.

Deito-me e me pego desejando que o dia seguinte venha logo, e eu possa vê-lo fazer tudo de novo.

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